São 5h da manhã. Não consigo dormir. Me levanto, pego o roupão cor de vinho e me sento para escrever essas palavras que insistem em ecoar dentro de mim. Você gostava dessa cor? Quais eram suas cores favoritas? Eu não sei. Nunca falamos sobre isso, mas tantas outras coisas falamos. Lembro de seus causos, das histórias que carregava, suas experiências que, de tão vividas, pareciam ecoar no tempo. Suas experiências de vida.
Vida. Esta semana completou seis anos desde que você se foi. Oitenta anos de uma vida que soube unir. Você era o elo que mantinha a família unida. E agora, há essa ausência. A família não se despediu quando parti. Ainda não compreendo algumas atitudes. Mas você, sei que teria ficado feliz com minha partida, como sempre ficou quando via a gente se lançando na vida. Teria me dado orientações e cuidados prévios, claro.
Cresci ouvindo suas palavras. “Vocês estão entregues às máquinas“, dizia você, num tempo em que nós ainda nos dividíamos entre uma volta de bicicleta e cuidar do nosso tamagotchi. Mal sabia você que hoje estaríamos vivendo a era da dopamina barata, com celulares que mais parecem extenções da nossa mente.
Sinto falta dos almoços de domingo. Das conversas que se arrastavam até a tarde, entre uma xícara de café e outra. Herdei de você o gosto pela palavra, pela conversa que se desenrola como quem tece memórias. Ouvi tantas histórias. Muitas vezes as mesmas, repetidas com o mesmo entusiasmo. E foram elas que me ajudaram a desenvolver um olhar crítico sobre o mundo.
Shogum. Assim você me chamava quando eu era apenas um bebê, antes mesmo de completar um ano. Dizia que meu cabelo lembrava o dos guerreiros japoneses da série que passava na televisão. Eu ria, me sentia pertencente, enraizada nesse núcleo que você ajudou a criar.
Quanto eu gostaria de ter compartilhado com você nesses últimos seis anos. As alegrias e as angústias: abrir e fechar minha empresa, as incertezas da pandemia, morar sozinha de novo, aceitar a religião que tanto você criticou, mas que também conhecia e fez parte. Meu casamento. Minha mudança pra outro país.
Às vezes me pego pensando em você. No que você gostava, no jeito cuidadoso com que fazia tudo. Quando eu era criança, achava você sério, até um pouco ríspido. Mas com o tempo, aprendi a te ouvir. E agora, mais do que nunca, sinto falta desse ouvir. O que você me diria agora? Qual seria o seu conselho?
Mas não posso mais ouvir sua voz. Às vezes você aparece nos meus sonhos. Sempre bem. Assim como na última imagem que tenho sua: sem dor, finalmente livre dela. Entendo agora o motivo de sua seriedade, da dureza que às vezes parecia carregar. Era a dor. Ela te acompanhou por quase quarenta anos. E mesmo assim, você resistiu. Superou cada batalha, nunca desistiu. Até que o câncer veio, e sua força, por fim, descansou.
Meu único desejo é que essas memórias nunca me abandonem. Desde o carrinho de rolimã que você fez para nós, até o dia em que me ajudou a comprar meu primeiro carro. Das histórias sobre como aprendeu a gostar de cebola, até a vez em que me incentivou a comer pimenta. Dos conselhos para escolher a faculdade, até suas histórias de quando começou a trabalhar como carteiro.
Quanto tempo dura o luto? Dizem que dura semanas, meses, talvez anos.
Eu não sei a resposta. É um sentimento que às vezes vem, e me faz chorar. Mas não me paralisa. Porque sei que você, do seu jeito, não permitiria que eu me entregasse à dor. Assim como você que nunca o fez.
Este texto é para você, Rogério, meu tio-avô.
Quer mergulhar ainda mais nessa reflexão?
Ouça esse texto na minha voz e sinta cada palavra dessa jornada de saudade e memórias.
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